Sérgio Araújo




Poesia & Prosa

Soluçou rompendo o silêncio da noite. Não há luz, a escuridão deixa suas marcas no espaço onde os olhos das vagas velas vasculham em vão o vão impuro, repleto de sonhos...


Salinidade retrô

Invólucro que impregna a retina

Cristalina salina na intempérie

Vesga de toda cal

De todo sal que circula

Na líquida superfície ondulante

Enquanto rosna a rosca da lente

Intermitente

Saliente olho vagante

Blasfemo tradutor da realeza

Que traga no ventre turvo

Escuriclaro obturado

Eletrizado

Vômito cromatizado

Na plasmogenia salitrosa

Reluzente

Claro e quente

Nascente


Clarisônicas

Quero começar com um texto incerto para as horas certas! Um texto de “de memórias” Um Conto-canto pedindo desconto pelo não contado e cantando para não ficar calado!

Contam que poetas, loucos e professores, são seres alados vindos de um mundo fantástico onde as flores brotam das pedras e o leito dos rios, do puro brilhante, refletem as maravilhas que, estampadas na paisagem são o deleite diário desses seres levados.

Desde antes das cordas e das dobras do tempo, desde que a luz se desfez em pingos leves e coloriu o espírito do mundo, esses seres de outro planeta que jamais morrem, continuam suas vidas habitando nos corpos luminosos e, volta e meia, conversam com o mundo através da poesia. A poesia que o mundo transpira e que só pode ser vista nas pequenas coisas, nas intervivências.

Lá onde existe um oceano cheio de perigosos piratas malvados e heróis vingadores, onde as naus errantes singram incertas vagas e tremem nas calmarias. Saga de titãs a navegar no mar de silêncios.

Um corte no pé, ataque de sanguessugas e, de vez em quando, uma espiadela nas meninas tomando banho enquanto suas mães lavam roupas batendo nas pedras e cantarolando alguma modinha dos tempos de menina-moça.

Ultraman, super-heróis das figurinhas de chiclete, calça coringa e um dia todo para brincar de Bang-Bang com direito a coldre e revolver com espoletas de papel. Entender a língua do “P”, a língua falada em Alfa de Centauro ou em algum planeta visitado por Flash Gordon. Com ela faço e desfaço. Escuto segredos, construo cochichos, mando recados para o próximo passo.

Piso de barro é mais legal e, se chover, melhor ainda. Nada como uma bela falta, daquelas que nos atira para o ar e nos faz deslizar pelo terreno molhado, arranhado, sangrando e sinceramente convencido de que craque é craque!

Uma passadinha naquela calha do telhado da vizinha. Que maravilha! Ainda muito frio, mas daqui a pouco passa. É só correr, abrir os braços e sair chutando a água empoçada, aqui e ali. Outra bica mais forte e logo aparecem os amigos para festejar. Depois, um banho quente acompanhado de um falatório interminável e a promessa de uma surra que nunca vem.

Em breve voaremos arrastados pela ventania dos domingos, em fins de tarde e poderei dizer-lhe de tudo o que sei da existência do universo, da causa das desgraças do mundo, dos medos e das injustiças; dos pensamentos ainda não pensados e da possibilidade de sonhar sonhos impossíveis, realizá-los na imaginação e escrevê-los para que outros possam sonhar os seus sonhos. Sonhos de papel, de carne e osso, de sorrisos e lágrimas.

Não contei as estrelas naquela noite, porque os sapatos machucavam os meus pés. A lua? Escorregou sobre mim com o nariz inchado e me proibiu de sair de casa. Mas, eu queria apertar as estrelas inchadas com os sapatos da lua. Naquela noite, o universo desabou sobre mim em um milhão de microscópicas partículas coloridas. Muitas cortaram a escuridão do meu corpo nervosamente posto sobre os sapatos metálicos da noite.

Outro dia, eu estava a sonhar sonhos de claridades e as infinitudes, quando três lumes incidiram brancos, recortados num corpo branco ao fundo, Branqueado. Branqueagudo sobre o mar enegrecido. Escuro contraste, corexplosão no abismo onde os pés passeiam rijos e calmos a percorrer caminhos na areia, descalços.

Não enviei aquela carta que te escrevi. Carteiro algum percorreu a nossa distância, mas você há de ter lido aquelas palavras distantes e tão próximas que enroscavam em sua pele como o corpo de um felino. Contei de mim e de como eu sou o texto base de um plano simples, tão simples como a expansão de um astro milenolítico; que costumo destronar os Reis e passa-lhes a navalha sem pedir licença ao barbeiro. Contei sobre felicidade e como reparava quando tu dançavas sobre as pedras quentes com braços e pernas de serpente.

Montes, roças, verde perene, a casa estava no alto de uma colina. Decorei toda a geografia que havia no caminho, todas as serras e plantações de banana. Ao fundo, o rio amarelado pelas águas da chuva parecia querer cortar caminho subindo pelas margens altas.

Faz tempo que não te vejo. Há pouco era uma palavra: “Blanc”, uma metade do que hoje sou e o sonho de que numa avenida ensolarada eu pudesse deitar-me contigo sobre as flores da calçada.

Todo aquele vale era de um intenso verde metálico, com suas flores de auroras esquecidas nas incomensuráveis janelas e portas pintadas com as cores do amanhecer. Ao longe, nas sombras do firmamento, pequenas nuvens furavam o céu como facas de ponta, velhas e afiadas. Por toda aquela terra, de portas entreabertas ouve-se, silábico, monótono, o som das tépidas manhãs que se descortinam, clarisônicas!


Pessoas do mesmo verbo

Eu crio e descubro algo novo

Em minhas velhas tralhas esquecidas.

Me surpreende, me encanta, me choca.

É um reencontro com o meu próprio lixo

Sedimentado numa área alagada qualquer

Da minha existência desvelada.

Me encanto no desencanto.

Não posso criar sem desencantar-me

E, desencantando-me, me encontro

Num encanto imaginativo.

Quando desconstruo o dia e a cidade

Ergo minha imaginação,

As minhas imagens em movimento

Num palco sem plateia.

E eu queria poder olhar-me

Com olhos de outros

Como um crítico escondido atrás das luzes.

Não é de mim que falo apenas.

Eu também sou esse crítico que te ofusca

E te vejo só e desnuda.

Você pessoa

Que por trás de toda a tinta

É tão crua…

Tão só.

Não nos vemos, não nos tocamos,

Mas criamos.

E cá estamos a nos encontrar.

Você me lê e isso é mais seu do que meu.

Você me recria embaralhando nossas tralhas

Eu te imagino, imaginando o que sei e o que não sei de nós.

Portanto, te digo: eu não sei!

Só queria saber o que pode um poema

Nesse encontro.

Você e eu.

Pessoas do mesmo verbo.


Aiabá

Aiabá é sempre um galho entre o Nilo e o Amazonas. Subiu aos céus em seu espelho caboclo-terra e forjou das ondas da FM-cordas, o cordel satírico do Assaré.

Um índio, filho de Funai-mata-mata, requer alforria e bate tam,tam,tam na pedra Içu-cabeça de pau oco. Aiabá sorri no V.T. e arriba…

Lá das nuvens açoprateadas, ela nos conta a história de como sua mãe sobreviveu à tribo do feiticeiro Edi-pô. Arequenas, trombeteiros, galopam seus cavalos marinhos na correnteza bosta-arquivelhas do rio das tripas. Eis Aiabá, maravilhoso cidadão dos out-doors. Contam que Aiabá, ao nos visitar, teria feito voar sobre o Abaeté, as cuecas molhadas do tio Sam.

Abá Kura-kura. Fogo nos cabelos verde wave e aqui jaz um piro-piro que em vida cruzou o atlântico em busca da palha de aço dos Jesuítas. Aiabá visitou o ano 1274 e rasgou a Suma Teológica em ato puro. Antes, estivera com Heráclito e Éfeso lhe era cara e bela. Podia-se ainda passear, ir às olimpíadas ou participar dos freqüentes concursos de charada promovidos pelo Comitê Executivo do Templo de Ártemis e no ano 500 a.C., ganhou o concurso em parceria com Heráclito. Eis a charada: “Concorda o que de si difere: harmonia de movimentos contrários, como do arco e da lira”.

Saá-Ká-Tá – certa vez viu Ianomâmi sentado, meditando. Era meio-dia e Ianomâmi, primogênito do Pau d`arco, crispando a água brilhante com as garras de uma onça pintada, disse-lhe, citando Maiakovski: – “Os jovens lutam contra esta canonização dos escritores-guias, que pisam com o bronze pesado dos monumentos a garganta da palavra nova que liberta a arte”.

Riscando a areia com um osso de preguiça, Aiabá respondeu: – a palavra em movimento é minha borduna em riste e minha palavra e a minha borduna são um. – Pois bem – disse Ianomâmi – eu corri a minha mão sob a terra, pisei a lama e moldei com cuspe este pote à minha frente. Vê? Eu o atirarei ao rio e daqui há dez anos eu o reconhecerei. Ele sou eu!

Aiabá partiu e arrastou consigo a louca dança da poeira, veio ver o Robot-rato do novo século e embora não houvesse tempo para entregar-se a brincadeiras pueris,entortou três antenas, quando sobrevoou o cinza-morto da aldeia próspera. Aiabá bateu em ré-tirada e agora que nos deixou, ainda vive na matéria pretoquente das ruas, dos becos, sobrevivem ainda os seus átomos-cor-silábica a repetir eternamente, onde quer que haja sol, o “Da” que escapou dos lábios do poeta noite a dentro.

– Boa noite. Responderam aliviadas, as pessoas que se acotovelavam na pequena janela do sobrado.

Era tarde e já não havia mais o que fazer na rua, a menos que se queixe ser notado por quase todas as pessoas em suas janelas ou pelas velhas barulhentas e pouco amáveis diante de um estranho que, de passagem, ensaiou um cumprimento. Decididamente aquela era a polis cor de esmeralda com seus raros aros de marfim.

Um grupo de meninos jogava sinuca com bolas de gude num tabuleiro inclinado. Escureceu e dois guénos próximos ao muro pintado com flores do jardim de Montezuma, entendiam a situação com seus pequenos olhos tardios.

Aiabá Pensou: – Mas como pode um poema atravessar as cordas do tempo?

Neste instante, interveio uma de olhos negros como os raros cristais da Salmônia e com seu corpo, sua flauta e seus cabelos, voou para pegar com os dedos livres, cada resto de cor que jazia nas cordas. Eram duas a tirar as cores das cordas, Nuas.

A noite levou os aprendizes e seus martelos para além das bigornas reluzentes, e se podia cantar.

Aiabá concordou e ouviu o poeta que dizia: "eu sou limalha em plena vida. Desejo apenas a insensatez, não me é dado participar de tua falsa segurança, nem quereria eu correr tal risco".

– Sim, és um louco! – disse-lhe Aiabá. Mas, Quem te julgará, Se os autos do teu processo ainda não foram lavrados? Pobre diabo! Que a justiça te seja cega e desejará mil vezes ter sido condenado.

E Aiabá visitou mais uma vez o cenário em que tudo começou. Ali, bem ali, onde o sol penetra entre as colunas e incendeia as pedras do chão.

Sobre o mar, duas ou três nadas sopram as espumas das ondas. O sol está bem alto, na praia ouve-se o vento e vê-se as pegadas que não levam a lugar algum.

Entardeceu: a noite explodia sobre sua cabeça como um balão de gás e espirrava confetes maduros em sua roupa de domingo. Naquele tempo ainda se podia andar pelas ruas sem despertar a cólera dos homens da noite. Um guarda noturno vigiava as fortalezas decadentes e apitava para merecer suas migalhas postas às portas: um pouco de vinho, dinheiro e as nozes recusadas por alguma criança. Por algum tempo, deixou seu pensamento voar em meio às impressões daquela noite. Revirar as pedras e andar pelas ruas para celebrar a Katharsis enquanto as Bacantes erguem-se dos bancos de pedra à beira dos igarapés, douradas e sonolentas a reclamar cada uma à sua maneira, suas porções de paraíso, suas noites de sonhos. Alguém declamava: – Ah! Viajante maldito. Jamais poderão acorrentar-te a esta nau que conduz a todos por caminhos conhecidos, tua carroça é a minha. Ei-la à deriva, disparada pelos campos, cidades, vilas, rios que não te prendem em seus leitos de argila. Solta estas rédeas, atira-as ao vento e grita para que te ouçam: eu possuo o tempo bem aqui na minha mão. Ah! Vrêmia maldito, não te conhecem nem conhecerão antes do tempo. As lâmpadas dos velhos postes de madeira iluminavam aqui e ali, luz métrica e volátil como os capinzais das orlas das estradas e lá está ele, quando ressoa pelos quatro cantos: Creia-me, tua imagem, eu a vi projetada ainda ontem, como uma sombra em plástico transparente. Que tens a dizer? Aiabá caminha agora, atreve-se a chutar uma lata vazia sobre as pedras da calçada e fala baixinho: – Que faço aqui? É como se estivesse apoiado num parapeito estreito a olhar sobre a marquise. Atrás, sob a mesa, estão os pés de ontem nos chinelos de amanhã. Continua a sua caminhada que agora ganha ritmo com o bater dos pés em marcha. Ouve alguém que passa com muita pressa e passa, passa, passa… Certas vozes conhecidas, murmúrios que o tempo não dissipara, ondulavam em sua mente. Restos de diálogos entrecortados por visões há muito esquecidas, batiam como tambores, pulsavam até deixá-lo tonto.Um índio, filho de Funai-mata-mata, requer alforria e bate tam,tam,tam na pedra Içu-cabeça de pau oco. Aiabá sorri no V.T. e arriba… Lá das nuvens açoprateadas, ela nos conta a história de como sua mãe sobreviveu à tribo do feiticeiro Edi-pô. Arequenas, trombeteiros, galopam seus cavalos marinhos na correnteza bosta-arquivelhas do rio das tripas. Eis Aiabá, maravilhoso cidadão dos out-doors. Contam que Aiabá, ao nos visitar, teria feito voar sobre o Abaeté, as cuecas molhadas do tio Sam. Abá Kura-kura. Fogo nos cabelos verde wave e aqui jaz um piro-piro que em vida cruzou o atlântico em busca da palha de aço dos Jesuítas. Aiabá visitou o ano 1274 e rasgou a Suma Teológica em ato puro. Antes, estivera com Heráclito e Éfeso lhe era cara e bela. Podia-se ainda passear, ir às olimpíadas ou participar dos freqüentes concursos de charada promovidos pelo Comitê Executivo do Templo de Ártemis e no ano 500 a.C., ganhou o concurso em parceria com Heráclito. Eis a charada: “Concorda o que de si difere: harmonia de movimentos contrários, como do arco e da lira”. Saá-Ká-Tá – certa vez viu Ianomâmi sentado, meditando. Era meio-dia e Ianomâmi, primogênito do Pau d`arco, crispando a água brilhante com as garras de uma onça pintada, disse-lhe, citando Maiakovski: – “Os jovens lutam contra esta canonização dos escritores-guias, que pisam com o bronze pesado dos monumentos a garganta da palavra nova que liberta a arte”. Riscando a areia com um osso de preguiça, Aiabá respondeu: – a palavra em movimento é minha borduna em riste e minha palavra e a minha borduna são um. – Pois bem – disse Ianomâmi – eu corri a minha mão sob a terra, pisei a lama e moldei com cuspe este pote à minha frente. Vê? Eu o atirarei ao rio e daqui há dez anos eu o reconhecerei. Ele sou eu! Aiabá partiu e arrastou consigo a louca dança da poeira, veio ver o Robot-rato do novo século e embora não houvesse tempo para entregar-se a brincadeiras pueris,entortou três antenas, quando sobrevoou o cinza-morto da aldeia próspera. Aiabá bateu em ré-tirada e agora que nos deixou, ainda vive na matéria pretoquente das ruas, dos becos, sobrevivem ainda os seus átomos-cor-silábica a repetir eternamente, onde quer que haja sol, o “Da” que escapou dos lábios do poeta noite a dentro. – Boa noite. Responderam aliviadas, as pessoas que se acotovelavam na pequena janela do sobrado. Era tarde e já não havia mais o que fazer na rua, a menos que se queixe ser notado por quase todas as pessoas em suas janelas ou pelas velhas barulhentas e pouco amáveis diante de um estranho que, de passagem, ensaiou um cumprimento. Decididamente aquela era a polis cor de esmeralda com seus raros aros de marfim. Um grupo de meninos jogava sinuca com bolas de gude num tabuleiro inclinado. Escureceu: dois guénos próximos ao muro pintado com flores do jardim de Montezuma, entendiam a situação com seus pequenos olhos tardios. Aiabá Pensou: – Mas como pode um poema atravessar as cordas do tempo? Neste instante, interveio uma de olhos negros como os raros cristais da Salmônia e com seu corpo, sua flauta e seus cabelos, voou para pegar com os dedos livres, cada resto de cor que jazia nas cordas. Eram duas a tirar as cores das cordas, Nuas. A noite levou os aprendizes e seus martelos para além das bigornas reluzentes, e se podia cantar. Aiabá concordou e ouviu o poeta que dizia: – eu sou limalha em plena vida. Desejo apenas a insensatez, não me é dado participar de tua falsa segurança, nem quereria eu correr tal risco. – Sim, és um louco! – disse-lhe Aiabá. Mas, Quem te julgará, Se os autos do teu processo ainda não foram lavrados? – Pobre diabo! Que a justiça te seja cega e desejará mil vezes ter sido condenado. E Aiabá visitou mais uma vez o cenário em que tudo começou. Ali, bem ali, onde o sol penetra entre as colunas e incendeia as pedras do chão. Sobre o mar, duas ou três nadas sopram as espumas das ondas. O sol está bem alto, na praia ouve-se o vento e vê-se as pegadas que não levam a lugar algum. Entardeceu: a noite explodia sobre sua cabeça como um balão de gás e espirrava confetes maduros em sua roupa de domingo. Naquele tempo ainda se podia andar pelas ruas sem despertar a cólera dos homens da noite. Um guarda noturno vigiava as fortalezas decadentes e apitava para merecer suas migalhas postas às portas: um pouco de vinho, dinheiro e as nozes recusadas por alguma criança. Por algum tempo, deixou seu pensamento voar em meio às impressões daquela noite. Revirar as pedras e andar pelas ruas para celebrar a Katharsis enquanto as Bacantes erguem-se dos bancos de pedra à beira dos igarapés, douradas e sonolentas a reclamar cada uma à sua maneira, suas porções de paraíso, suas noites de sonhos. Alguém declamava: – Ah! Viajante maldito. Jamais poderão acorrentar-te a esta nau que conduz a todos por caminhos conhecidos, tua carroça é a minha. Ei-la à deriva, disparada pelos campos, cidades, vilas, rios que não te prendem em seus leitos de argila. Solta estas rédeas, atira-as ao vento e grita para que te ouçam: eu possuo o tempo bem aqui na minha mão. Ah! Vrêmia maldito, não te conhecem nem conhecerão antes do tempo. As lâmpadas dos velhos postes de madeira iluminavam aqui e ali, luz métrica e volátil como os capinzais das orlas das estradas e lá está ele, quando ressoa pelos quatro cantos: Creia-me, tua imagem, eu a vi projetada ainda ontem, como uma sombra em plástico transparente. Que tens a dizer? Aiabá caminha agora, atreve-se a chutar uma lata vazia sobre as pedras da calçada e fala baixinho: – Que faço aqui? É como se estivesse apoiado num parapeito estreito a olhar sobre a marquise. Atrás, sob a mesa, estão os pés de ontem nos chinelos de amanhã. Continua a sua caminhada que agora ganha ritmo com o bater dos pés em marcha. Ouve alguém que passa com muita pressa e passa, passa, passa… Certas vozes conhecidas, murmúrios que o tempo não dissipara, ondulavam em sua mente. Restos de diálogos entrecortados por visões há muito esquecidas, batiam como tambores, pulsavam até deixá-lo tonto.Um índio, filho de Funai-mata-mata, requer alforria e bate tam,tam,tam na pedra Içu-cabeça de pau oco. Aiabá sorri no V.T. e arriba… Lá das nuvens açoprateadas, ela nos conta a história de como sua mãe sobreviveu à tribo do feiticeiro Edi-pô. Arequenas, trombeteiros, galopam seus cavalos marinhos na correnteza bosta-arquivelhas do rio das tripas. Eis Aiabá, maravilhoso cidadão dos out-doors. Contam que Aiabá, ao nos visitar, teria feito voar sobre o Abaeté, as cuecas molhadas do tio Sam. Abá Kura-kura. Fogo nos cabelos verde wave e aqui jaz um piro-piro que em vida cruzou o atlântico em busca da palha de aço dos Jesuítas. Aiabá visitou o ano 1274 e rasgou a Suma Teológica em ato puro. Antes, estivera com Heráclito e Éfeso lhe era cara e bela. Podia-se ainda passear, ir às olimpíadas ou participar dos freqüentes concursos de charada promovidos pelo Comitê Executivo do Templo de Ártemis e no ano 500 a.C., ganhou o concurso em parceria com Heráclito. Eis a charada: “Concorda o que de si difere: harmonia de movimentos contrários, como do arco e da lira”. Saá-Ká-Tá – certa vez viu Ianomâmi sentado, meditando. Era meio-dia e Ianomâmi, primogênito do Pau d`arco, crispando a água brilhante com as garras de uma onça pintada, disse-lhe, citando Maiakovski: – “Os jovens lutam contra esta canonização dos escritores-guias, que pisam com o bronze pesado dos monumentos a garganta da palavra nova que liberta a arte”. Riscando a areia com um osso de preguiça, Aiabá respondeu: – a palavra em movimento é minha borduna em riste e minha palavra e a minha borduna são um. – Pois bem – disse Ianomâmi – eu corri a minha mão sob a terra, pisei a lama e moldei com cuspe este pote à minha frente. Vê? Eu o atirarei ao rio e daqui há dez anos eu o reconhecerei. Ele sou eu! Aiabá partiu e arrastou consigo a louca dança da poeira, veio ver o Robot-rato do novo século e embora não houvesse tempo para entregar-se a brincadeiras pueris,entortou três antenas, quando sobrevoou o cinza-morto da aldeia próspera. Aiabá bateu em ré-tirada e agora que nos deixou, ainda vive na matéria pretoquente das ruas, dos becos, sobrevivem ainda os seus átomos-cor-silábica a repetir eternamente, onde quer que haja sol, o “Da” que escapou dos lábios do poeta noite a dentro. – Boa noite. Responderam aliviadas, as pessoas que se acotovelavam na pequena janela do sobrado. Era tarde e já não havia mais o que fazer na rua, a menos que se queixe ser notado por quase todas as pessoas em suas janelas ou pelas velhas barulhentas e pouco amáveis diante de um estranho que, de passagem, ensaiou um cumprimento. Decididamente aquela era a polis cor de esmeralda com seus raros aros de marfim. Um grupo de meninos jogava sinuca com bolas de gude num tabuleiro inclinado. Escureceu: dois guénos próximos ao muro pintado com flores do jardim de Montezuma, entendiam a situação com seus pequenos olhos tardios. Aiabá Pensou: – Mas como pode um poema atravessar as cordas do tempo? Neste instante, interveio uma de olhos negros como os raros cristais da Salmônia e com seu corpo, sua flauta e seus cabelos, voou para pegar com os dedos livres, cada resto de cor que jazia nas cordas. Eram duas a tirar as cores das cordas, Nuas. A noite levou os aprendizes e seus martelos para além das bigornas reluzentes, e se podia cantar. Aiabá concordou e ouviu o poeta que dizia: – eu sou limalha em plena vida. Desejo apenas a insensatez, não me é dado participar de tua falsa segurança, nem quereria eu correr tal risco. – Sim, és um louco! – disse-lhe Aiabá. Mas, Quem te julgará, Se os autos do teu processo ainda não foram lavrados? – Pobre diabo! Que a justiça te seja cega e desejará mil vezes ter sido condenado. E Aiabá visitou mais uma vez o cenário em que tudo começou. Ali, bem ali, onde o sol penetra entre as colunas e incendeia as pedras do chão. Sobre o mar, duas ou três nadas sopram as espumas das ondas. O sol está bem alto, na praia ouve-se o vento e vê-se as pegadas que não levam a lugar algum. Entardeceu: a noite explodia sobre sua cabeça como um balão de gás e espirrava confetes maduros em sua roupa de domingo. Naquele tempo ainda se podia andar pelas ruas sem despertar a cólera dos homens da noite. Um guarda noturno vigiava as fortalezas decadentes e apitava para merecer suas migalhas postas às portas: um pouco de vinho, dinheiro e as nozes recusadas por alguma criança. Por algum tempo, deixou seu pensamento voar em meio às impressões daquela noite. Revirar as pedras e andar pelas ruas para celebrar a Katharsis enquanto as Bacantes erguem-se dos bancos de pedra à beira dos igarapés, douradas e sonolentas a reclamar cada uma à sua maneira, suas porções de paraíso, suas noites de sonhos. Alguém declamava: – Ah! Viajante maldito. Jamais poderão acorrentar-te a esta nau que conduz a todos por caminhos conhecidos, tua carroça é a minha. Ei-la à deriva, disparada pelos campos, cidades, vilas, rios que não te prendem em seus leitos de argila. Solta estas rédeas, atira-as ao vento e grita para que te ouçam: eu possuo o tempo bem aqui na minha mão. Ah! Vrêmia maldito, não te conhecem nem conhecerão antes do tempo. As lâmpadas dos velhos postes de madeira iluminavam aqui e ali, luz métrica e volátil como os capinzais das orlas das estradas e lá está ele, quando ressoa pelos quatro cantos: Creia-me, tua imagem, eu a vi projetada ainda ontem, como uma sombra em plástico transparente. Que tens a dizer? Aiabá caminha agora, atreve-se a chutar uma lata vazia sobre as pedras da calçada e fala baixinho: – Que faço aqui? É como se estivesse apoiado num parapeito estreito a olhar sobre a marquise. Atrás, sob a mesa, estão os pés de ontem nos chinelos de amanhã. Continua a sua caminhada que agora ganha ritmo com o bater dos pés em marcha. Ouve alguém que passa com muita pressa e passa, passa, passa… Certas vozes conhecidas, murmúrios que o tempo não dissipara, ondulavam em sua mente. Restos de diálogos entrecortados por visões há muito esquecidas, batiam como tambores, pulsavam até deixá-lo tonto.


Salinidade retrô


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© 2020 Sérgio Araújo

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